Por que 98 cidades do CE desrespeitam a lei e seguem sem municipalizar o trânsito

Falta de capacidade financeira para arregimentar uma estrutura capaz de manter um órgão de trânsito; frota de veículos reduzida e, consequentemente, baixa arrecadação com multas e taxas; receio de impopularidade política. São estes, segundo Renato Campestrini, especialista em trânsito, alguns dos gargalos que podem ajudar a explicar a morosidade no processo de municipalização do trânsito, conforme preconizado há 24 anos pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB). 

Das 184 cidades cearenses, ao menos 98 ainda não possuem o trânsito municipalizado. Ou seja, não há qualquer equipamento que aplique as normativas previstas no Código de Trânsito. Sem fiscalização, não há aplicação da lei. Sem aplicação da lei, condutores trafegam livremente sem capacete, habilitação e, por vezes, excedendo a capacidade do veículo. Medidas que põem os próprios condutores em risco e levam perigo também à terceiros.

O artigo 24 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) estabeleceu a municipalização do trânsito, em 1998, que significa a integração do município ao Sistema Nacional de Trânsito (SNT). O objetivo é tornar as questões de trânsito responsabilidade de cada cidade. 

No entanto, essa problemática que se arrasta há mais de duas décadas pode ter uma resolubilidade no horizonte. O presidente do Conselho Estadual de Trânsito (Cetran), Luiz Pimentel, apresenta pontos que contrapõem os gargalos acima mencionados. Conforme sua avaliação, é possível e palpável as cidades cearenses – mesmo aquelas menores, com frota reduzida – instituírem a municipalização do trânsito e se adequarem à lei. 

IMPOPULARIDADE  

Ele inicia observando que o temor de alguns gestores em serem vistos como impopulares ao municipalizarem o trânsito não se sustenta. Pimentel ressalta que os pontos positivos com a adequação são inúmeros e podem ser sentidos, a um curto prazo, pelos munícipes.  

“Municipalizar o trânsito impacta diretamente na redução dos acidentes. Quando há a aplicação da lei, o trânsito passa a ficar ordenado. Motociclistas, que são aqueles que mais se acidentam, passam a utilizar capacete o que reduz os danos em um possível acidente. Enfim, essa redução, atestada em cidades que já municipalizaram, é uma das consequências mais importantes”, descreve o presidente do Cetran. 

A cidade de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), municipalizou o trânsito um ano após a normatização do CTB. À época, a média de acidentes automobilístico era de 4 por dias, segundo dados da Prefeitura. Após a implantação, caiu para dois. Uma redução de 50%. 

Essa queda significativa no índice de acidentes pode, na visão do especialista Campestrini, ser publicizada de modo a modificar “a cultura da população em relação a gestão do trânsito”.

“As pessoas estão acostumadas a pensar trânsito como uma forma de arrecadação, todavia, ela só advém do desrespeito às regras de trânsito por parte dos condutores”, pontua Renato Campestrini.

Portanto, municipalizar, realizar um bom trabalho de conscientização dos comportamentos adequados, seguros e posteriormente fiscalizar o cumprimento das normas, é algo a se pensar por parte dos gestores para que a Municipalização seja vista com outros olhos por parte da população.

REDUÇÃO DOS CUSTOS 

Municipalizar o trânsito requer um investimento por parte da gestão municipal. É necessário contratação de profissionais que atuarão na fiscalização, disponibilização de prédio físico, veículos, instalação de semáforos, placas e outras sinalizações nas vias. Um custo que, para cidades menores, pode não caber no orçamento. 

Contudo, para esta questão, o Cetran vislumbra uma alternativa: a modalidade consórcio. Este método unificaria os custos de mais de uma cidade da mesma região, criando um só órgão fiscalizador. “A intenção é garantir meios de que, mesmo os pequenos municípios, consigam se integrar”, destaca Pimentel. 

O plano, ainda segundo Luiz, é criar uma autarquia regional que atue como guarda-chuva em uma determinada região. “No lugar de criar várias autarquias, uma só responderia, de forma consorciada, às cidades limítrofes. Os moldes são semelhantes ao Consórcio de Saúde e o do Resíduos Sólidos”, completa o presidente do Cetran. 

Pimentel lembra ainda que o dinheiro investido na implantação do equipamento e contratação de servidores é revertido à medida que o trânsito municipalizado passe a gerar receita. “De início, os gestores têm gastos, mas esse valor é revertido no futuro, com recursos oriundos de multas, regulamentação dos estacionamentos [como o Zona Azul], emplacamento dos veículos, dentre outros”, detalha. 

Para Renato Campestrini “a modalidade consórcio é uma alternativa válida, já colocada em prática em algumas regiões do país, e surtem efeitos positivos, a medida que com a percepção da fiscalização, as pessoas, os condutores tendem a respeitar os princípios normativos do Código de Trânsito”.

Contemplar, com essa modalidade, cidades pequenas, é essencial, acrescenta o especialista. “Mais que viável [a municipalização por parte dos municípios pequenos] e necessária, ela é uma obrigação legal e deve ser cumprida por todos os Municípios, independentemente do porte”, acrescenta Campestrini.

AUSÊNCIA DE SANÇÕES 

Mesmo com 24 anos em desalinhamento com a lei, nenhum gestor das quase 100 cidades que não possuem ainda o trânsito municipalizado sofreu qualquer tipo de punição e/ou sanção. A atribuição de aplicar estas punições cabe a promotoria, que pode entrar com ações ou recomendações aos prefeitos.

Dentre as irregularidades que podem ser atribuídas aos gestores, estão o ato de improbidade e, em casos mais extremos, até dano moral coletivo. 

Mas, diante dessa ausência de responsabilização aos gestores, os processos tendem a seguir com maior morosidade e outros tantos nem sequer são iniciados. Essa ‘impunidade’ “pode de fato ser um dos motivos pelos quais não se tem uma maior integração dos Municípios do país ao Sistema Nacional de Trânsito”, considera Renato Campestrini.

Em julho de 2022, eram 85 com o trânsito integrado, 99 sem municipalização e outros 12 em processo de integração. Passados seis meses,  Ipaumirim avançou e concretizou os trâmites. Já Aiuaba e Solonópole estão com agendas para, em janeiro, receber inspeção técnica do Cetran onde será feito a verificação in loco do cumprimento da legislação.  

“Caso tudo em ordem, será emitido o Laudo de Inspeção e a Certificação para Integração ao Sistema Nacional de Trânsito no Ceará”, destacou Luiz Pimentel. Acaraú, Campos Sales, Catunda, Graça, Pentecoste, Irauçuba, Madalena, Potiretama e Quixeré ainda seguem no processo de municipalização. 

Pimentel finaliza dizendo que, para avançar nesta questão, o Cetran tem realizado “diálogo constante com o Grupo de Trabalho Interinstitucional (GTI)”. Este grupo é composto pela Casa Civil, Secretária da Cidade, Detran, Tribunal de Contas da União no Ceará, Secretaria da Infraestrutura, Ministério Público, Polícia Militar, Associação dos Municípios do Estado do Ceará, Fundação de Ciência, Tecnologia e Inovação de Fortaleza, entre outros.

“A finalidade [do grupo] é discutir, planejar e definir o processo de municipalização do trânsito no Estado do Ceará”, conclui Luiz Pimentel. 

COMO SE INTEGRAR? 

Criar um órgão municipal executivo de trânsito é o primeiro passo para que a cidade incie seu processo de integração ao Sistema Nacional de Trânsito (SNT).  

O equipamento deve ter estrutura para desenvolver atividades de engenharia de tráfego, fiscalização, educação e controle e análise de estatística, ou atuarem de forma conveniada ou consorciada, conforme a nova resolução autoriza. 

Em seguida, o município deve prover, aos Cetran, os seguintes documentos:  

  • Denominação do órgão ou entidade executivo de trânsito e rodoviário, 
  • Cópia da legislação de constituição da Juntas Administrativas de Recursos de Infrações (Jari) municipal e de seu Regimento; endereço, telefone, correio eletrônico institucional do órgão ou entidade executivo de trânsito e rodoviário, e sítio eletrônico (se houver);
  • Fotos da fachada do prédio e das dependências, devidamente identificadas, dos veículos, caso existam, e de outros elementos julgados importantes para a análise dos trabalhos desenvolvidos para integração.
  • Segundo a resolução do Contran, “os municípios que optarem por delegar a totalidade ou parte das atribuições municipais a outro órgão ou entidade integrante do SNT deverão encaminhar cópia do convênio firmado”. 

Para a modalidade de consórcio público, o Cetran explica que “caberá à entidade executiva de trânsito criada encaminhar todos os documentos relacionados neste artigo, em nome dos municípios que a compõem”. 

Uma vez preenchidos os requisitos para integração ao SNT, o órgão criado assume a responsabilidade pelo planejamento, o projeto, a operação e a fiscalização, não apenas no perímetro urbano, mas também nas estradas municipais.  

Cabe, então, a Prefeitura desempenhar tarefas de sinalização, fiscalização, aplicação de penalidades e educação de trânsito.  

Escrito por André Costa/Diário do Nordeste

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