Músico cearense diagnosticado com autismo aos 38 anos alerta: ‘não dá pra nos conhecer pela cara’

Receber um diagnóstico pode ser, ao mesmo tempo, libertador e limitador – para quem tem o transtorno, é autoconhecimento; para a sociedade, é uma “caixa”. Essa realidade é vivida dia a dia por cearenses autistas, que relatam trajetórias inteiras lidando com as próprias questões e com os rótulos impostos a eles.

Neste 2 de abril, Dia Mundial de Conscientização do Autismo, cearenses diagnosticados com autismo já adultos rebatem estereótipos e sentenciam: “cada um de nós é diferente”.

Mesmo com vida e carreira já construídas, ser identificado dentro do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) aos 38 anos foi esclarecedor para o musicoterapeuta Glairton Santiago, hoje com 41. Só adulto, casado e profissional de referência na área da saúde ele compreendeu, por completo, as vivências da infância.

O diagnóstico veio da necessidade de compreender meu jeito de ser. Na minha infância, não se entendia o autismo. Pessoas que tinham as minhas características eram vistas como tímidas.

GLAIRTON SANTIAGO
Musicoterapeuta

Glairton aprendeu a ler e escrever antes de entrar na escola, sozinho. Tinha interesses específicos, principalmente ligados à música. Preferia estar na companhia dos sons e de adultos do que de pessoas da mesma idade. “Não funcionava bem em grupos”, resume.

“Eu sempre disse tudo de forma direta, sem filtros, e era mal interpretado. Tive dificuldades de relacionamentos na escola porque as pessoas tinham o jeito típico de funcionar, e meus interesses eram muito restritos. Sofri muito bullying por causa disso”, relembra.

Por meio da música, porém, entrava em sintonia com qualquer um. “Quando você e outra pessoa tocam, vocês estão engajados num objetivo em comum: produzir a música. Minhas diferenças não me empataram de ser expressivo nisso”, destaca.

Aos 16 anos, Glairton já era cantor profissional, e desafiando a própria dificuldade com barulhos altos e multidões, encarava os palcos em shows. Dia desses, duas décadas depois, até topou com uma fã da época, nas redes sociais. 

“Ela quer reunir a galera da época, já tô sofrendo”, brinca.

“Não dá pra nos conhecer pela cara”

Hoje, Glairton é formado em Música e Arteterapia, além de ser presidente da Associação de Musicoterapia do Ceará. Os sons, então, se tornaram ferramentas de trabalho para tratar pacientes com transtornos emocionais, mentais e com déficit cognitivo.

“Minha clientela é basicamente de pessoas autistas, a maioria crianças. O conhecimento sobre o autismo começou a me despertar, passei a reconhecer que as dificuldades dos pacientes eu já tinha vivenciado”, pontua.

Um autista adulto, que já tem uma vida estruturada, já é um profissional de referência, exige uma investigação profunda, remontar a trajetória. Pra mim, isso culminou com o diagnóstico: autista de nível 1 de suporte.

GLAIRTON SANTIAGO
Musicoterapeuta

Depois do diagnóstico, a discriminação e a ignorância da sociedade adentraram ainda mais no dia a dia. Como quando ele precisou buscar uma credencial especial de estacionamento num órgão público, e sentiu o preconceito em cada minuto de interação.

“Ficaram questionando se a credencial era pra mim. Uma pessoa autista não dá pra ser identificada pela cara. Ela tem dificuldades, mas tem muitas potencialidades”, pondera. 

“As pessoas precisam saber sobre autismo, e têm que conhecer o autista. Eu sou um autista, mas cada um de nós é diferente”, exclama Glairton, listando algumas características comuns a quem está no espectro.

Características do Autismo (ou critérios diagnósticos)

  • Déficit na comunicação, em linguagem verbal e interação social;
  • Interesses restritos, com hiperfocos em assuntos ou atividades; 
  • Dificuldade de aumentar repertório de interesses;
  • Hipersensibilidade auditiva e tátil.

“Sobrevivi à juventude, mas depois ficou difícil”

Escritor, publicitário, microempresário e consultor comercial. Todas as funções numa pessoa só, o cearense Fábio Mourajh, 35, que “sempre soube” que era autista, por ter familiares que são, mas recebeu o diagnóstico oficialmente aos 28 anos de idade.

Fábio relembra que, quando era criança, “o autismo não passava no radar” das pessoas. Era tabu, “visto como loucura”. “Muitas pessoas da minha idade podem estar no espectro e não tiveram oportunidade de esclarecimento”, ele reflete.

Quando você não é diagnosticado, você sobrevive à juventude, mas depois as coisas ficam muito difíceis. Pra mim, foi muito difícil me adaptar ao ambiente de trabalho.

FÁBIO MOURAJH
Publicitário e empresário

Pelas altas habilidades, Fábio concluiu o ensino médio aos 15 anos. Aos 19, já estava graduado em publicidade, curso que fez “apenas para aprender a falar, e não para seguir carreira”.

Foi depois de formado, por não conseguir permanecer nos ambientes de trabalho “muito barulhentos e com luzes fortes”, que o cearense buscou alternativas no empreendedorismo. 

Tornou-se o próprio patrão também por ter dificuldade de… Olhar nos olhos. Por uma característica do TEA, sequer passava das entrevistas de emprego. “Cresci ouvindo que quem não olha no olho não é confiável. Perdi muitas vagas porque não tenho essa habilidade”, relata.

Em certas entrevistas, falei que tinha autismo, pra ver se seria visto de maneira melhor, se compreenderiam. Mas isso se virou contra mim. No geral, é difícil estar numa minoria.

FÁBIO MOURAJH
Publicitário e empresário

É difícil não apenas no mercado de trabalho, mas na vida social, como ele detalha. “Sou um homem hétero que tem facilidade de conviver com mulheres, porque elas têm sensibilidade sobre os outros. Têm mais cuidado e respeito. ‘Se ele não gosta de barulho, então não vou fazer’. Já os homens ignoram, se eu pedir silêncio, chamam de frescura.”.

Foi por meio da escrita, então, que o cearense “se libertou”. Com livro publicado, hoje ele comanda uma gráfica e editora, além de prestar consultoria comercial a empresas. “A escrita surgiu no período da publicidade, em que eu tava me sentindo mal por não conseguir crescer, falar. Na escrita me libertei.

O que é o autismo?

O transtorno do espectro autista (TEA) engloba condições ligadas ao comprometimento no comportamento social, na comunicação e na linguagem, além de uma gama de interesses restritos e atividades que são únicas para o indivíduo e realizadas de forma repetitiva.  

O TEA começa na infância e persiste na adolescência e na idade adulta. Na maioria dos casos, as condições são aparentes durante os primeiros cinco anos de vida, como descreve a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS).Em todo o mundo, 1 em cada 160 crianças tem autismo. Este é um valor médio estimado, e a prevalência varia entre os estudos.

A OPAS destaca, ainda, um dos fatos mais importantes: “o nível de funcionamento intelectual em indivíduos com TEA é extremamente variável, estendendo-se de comprometimento profundo até níveis superiores”.  

A organização frisa também que “intervenções psicossociais baseadas em evidências, como o tratamento comportamental e os programas de treinamento de habilidades para os pais, podem reduzir as dificuldades de comunicação e comportamento social”.

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