Famílias ainda vivem na extrema pobreza no Ceará

A vendedora de desinfetante, Laura (nome fictício), se desloca todos os dias 11 quilômetros com dois filhos para garantir que irão almoçar. Saem da Barra do Ceará rumo à Parangaba. Buscam o restaurante popular, onde a refeição custa R$ 1,00. “Fartura” que dificilmente têm em casa, pois no lar não há certeza de comida. Situação semelhante ocorre com Joana (nome fictício), moradora do Siqueira, que tem deficiência física devido a sequelas da poliomielite. Ela só tem o Bolsa Família para sobreviver.

No Centro, Adriano (nome fictício), que vive em situação de rua, aposta na solidariedade de desconhecidos para garantir o sopão da noite. Faltam alimento, dinheiro, garantias. Ainda que em distintas condições de vulnerabilidade, essas pessoas (que devido à situação optamos por não expor os nomes verdadeiros) convergem afetadas pelo mal milenar. A fome, mais do que assombrar, fere. É física, mas vai além. Em Fortaleza, há pratos ainda vazios demarcando a permanência da desigualdade de renda e as privações características da extrema pobreza.

Nas famílias extremamente pobres, a renda familiar mensal por pessoa é de apenas R$ 89,00. Na Capital, pelo menos, 204.177 famílias estão em situação de extrema pobreza. Isto, considerando os registros formais dessa condição, pois esse total refere-se às famílias inscritas no Cadastro Único – mecanismo do Governo Federal que identifica e caracteriza a população de baixa renda para inserção nos programas sociais. Outras 39.728 famílias de Fortaleza estão em situação de pobreza, conforme o Ministério da Cidadania. Nesse caso, a renda mensal por pessoa é de somente R$ 178,00.

Efeitos

Essa condição social tem estreita relação com a disponibilidade de alimentos em quantidade e qualidade adequadas, sente Laura, que com R$ 200,00 mensais da renda do trabalho e os R$ 179,00 do Bolsa Família, convive com os dilemas da carência de verbas.

Com dois filhos pequenos e moradora de um imóvel alugado, por R$ 300,00, na Barra do Ceará, a alternativa da vendedora de desinfetante é buscar comida onde o custo sempre for menor. No período letivo, o filho mais velho vai para a creche e garante um pouco de alimentação à tarde. Mas nas férias, a situação regride. A criança almoça junto com a mãe e o irmão na Parangaba, onde, por dia, a Prefeitura atende, no restaurante popular, 1.400 pessoas.

Ainda assim, no único equipamento do tipo na Capital, a oferta de alimento é inferior à demanda. A fila, que se forma antes das 10h, segue até mais de 12h. São centenas de pessoas dispostas na porta do local. Com diferentes necessidades e histórias, o público agradece por poder usufruir do equipamento onde o prato de comida sacia a necessidade persistente.

A escassez também é sentida pela dona de casa Joana, moradora do Siqueira. Aos 49 anos, é no restaurante da Parangaba que ela e a filha de 10 anos, nas férias, matam a fome de almoço. Joana relata dificuldades de locomoção devido à deficiência física. Hoje, tem de sobreviver com R$ 179,00 reais do Bolsa Família. Reconhece com gratidão o fato de a filha estudar em uma escola pública de tempo integral. “É lá que ela almoça e merenda”, conta. A vantagem, que amortece a condição de pobreza, é a casa própria da família.

Nas praças, a população em situação de rua segue uma dinâmica própria de alimentação. Recebe o “que os outros querem dar”, conta Adriano, que há cinco anos vive nas vias da Capital. Na Praça do Ferreira, ainda há certo abastecimento, conta quem vive lá. “O que tem de certo mesmo é o sopão, toda noite. Durante o dia, o pessoal se vira, vai pro refeitório almoçar, faz o que pode”, relata. A alimentação, que é direito, quando chega via poder público, ainda é insuficiente diante da demanda. Quando chega pela benevolência alheia, é incerta.

O diagnóstico da Prefeitura é que em três pontos do Centro (Praça José de Alencar, Praça da Lagoinha e na Av. Tristão Gonçalves), o número de pessoas em situação de rua chega a 400. Mas, só no mês passado, a Capital recebeu o primeiro refeitório social destinado a este público.

No local são servidas 400 refeições diariamente para moradores de rua. Essa população é prioritária na política de garantia de segurança alimentar, explica o titular da Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), Elpídio Nogueira. A vulnerabilidade, esclarece o secretário, está atrelada não só à quantidade, mas também à qualidade da alimentação à disposição.

Insegurança Alimentar

Embora existam ferramentas que permitam identificar e classificar a insegurança alimentar e nutricional no nível local, esse mapeamento, de modo geral, não é realizado pelos municípios, informa a nutricionista e coordenadora do Grupo de Estudos em Política de Segurança Alimentar e Nutricional (GPSAN) da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Marlene Marques.

Em Fortaleza, para mensurar quem está em situação de insegurança alimentar que, segundo a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar e Nutricional pode ser leve, moderada ou grave, a Prefeitura utiliza dados de uma pesquisa específica feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2013. Os casos extremos de insegurança alimentar englobam a privação total de alimentos.

Para mensurar os riscos na Capital, conforme a professora, é feito um paralelo com a situação de segurança alimentar identificada pelo IBGE no Estado. “Neste caso, teríamos cerca de 35% de pessoas vivendo em insegurança”.

De modo geral, diz ela, os grupos mais vulneráveis são aqueles em que incidem os mais graves indicadores sociais. “A insegurança alimentar é maior entre as pessoas com menos anos de estudo e de menor renda. É maior nos domicílios com pessoas menores de 18 anos e entre as pessoas de cor negra e parda em relação à cor branca, e embora seja menor entre as mulheres em relação aos homens, ao analisar o tipo de insegurança alimentar por sexo, a pesquisa diz que há mais mulheres que homens em situações de insegurança alimentar moderada e grave”, acentua a nutricionista.

Recursos

Para reverter a situação de insegurança alimentar é preciso avançar em programas que incidam sobre as causas dessa condição, enfatiza a pesquisadora Marlene Marques. Dentre as ações que tem sido adotadas no Brasil nesse processo está o de transferência de renda, como o Bolsa Família. Outros incidem nas consequências da insegurança alimentar, como a distribuição de cestas básicas. 

Em Fortaleza, o chamado benefício eventual de distribuição de cestas básicas sofre o efeitos do contingenciamento de recursos do Governo Federal, relata o secretário, Elpídio Nogueira. No momento, o município sequer tem contrato em vigor para garantir esse benefício. “No momento não está funcionando como é para funcionar no momento. Eu devo ir ao Ministério (da Cidadania) no próximo mês para tentar discutir essa questão”, relata o secretário.

Os Centros de Referência de Assistência Social (CRAs), portas de entrada para atendimento de famílias vulneráveis, garante a presidente do Conselho Regional de Serviço Social, Leiriane Araújo, sofrem com a não regularidade desse benefício, pois dia após dia os equipamentos recebem um público carente desse benefício. “O que se faz é distribuir três, quatro cestas básicas diante de demanda enormes”. 

Ela critica a ausência de políticas concretas de segurança alimentar como a construção de restaurantes, cozinhas comunitárias e refeitórios. Além disso, ressalta que um dos grandes problemas de Fortaleza é que a estruturação da assistência social dependente de forma expressiva de Governo Federal. “Fortaleza concentrou seu orçamento da assistência nos recursos federais e com o congelamento dos gastos públicos vem sofrendo as consequências”. 

Por Diário do Nordeste

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