Crise financeira na Venezuela atinge até os criminosos

Uma das mais curiosas consequências do colapso econômico da  Venezuela é que o dinheiro basicamente desapareceu. Com a hiperinflação crescente, o governo não imprime moeda com a rapidez suficiente para acompanhar a desvalorização de modo que muitos venezuelanos usam cartões de débito, mas isto não significa que eles têm muito dinheiro para bancá-los.

De repente já não vale muito a pena bater carteiras. “Se roubam sua carteira, não há nada dentro dela”, disse Yordin Ruiz, 58 anos, sapateiro. 

Enquanto o líder oposicionista Juan Guaidó luta para arrancar o comando do país do presidente Nicolás Maduro, um drama ainda maior vem se desenrolando em segundo plano. A economia está em queda livre. E as oportunidades estão desaparecendo até para os ladrões em um dos países mais dominados pelo crime em todo o mundo.

Os assaltantes que costumavam girar por Caracas em motocicletas, mostrando suas pistolas nas vidraças dos carros e exigindo que suas vítimas entregassem as carteiras, agora só andam a pé. Não há peças de reposição para suas motos. No passado, os gatunos com frequência arrancavam os celulares de passageiros dos pequenos ônibus que rodam pelas vias rápidas de Caracas. Mas hoje o transporte público mal funciona.

Muitos venezuelanos não reportam os assaltos e não há dados estatísticos confiáveis sobre muitos tipos de crime. Mas o grupo sem fins lucrativos Venezuela Violence Observatory (Observatório Venezuelano de Violência), calcula que os assassinatos caíram de 89 para cada grupo de 100.000 pessoas em 2017, para 81,4 no ano passado. Seu relatório de 2018, baseado em dados de investigadores de oito universidades no país, encontrou sinais de que vários outros tipos de crimes também estão em queda.

Ocorreram poucos roubos a bancos porque não há muito dinheiro depositado nestas instituições. Quem pode se dar ao luxo de poupar? Há menos carros nas ruas para roubar. Com o preço das peças importadas subindo, muitos veículos ficam nas garagens.

E até os criminosos estão migrando, indica o relatório, juntando-se ao êxodo em massa de mais de três milhões de venezuelanos em busca de melhores oportunidades fora do país.

“Na Venezuela ser ladrão não é mais lucrativo”, disse Roberto Briceño-Leon, sociólogo que coordena o observatório. O declínio de casos de roubos reflete um fenômeno peculiar. Um visitante que retorna a Caracas depois de anos esperaria encontrar uma cidade decadente. Afinal a economia encolheu quase a metade nos últimos cinco anos. Mas a cidade não está em colapso. Ela está desaparecendo.

As ruas estão repletas de lojas, mas muitas têm grades de ferro baixadas o tempo todo; os lojistas não conseguem mais obter algum lucro. Há poucos carros nas ruas, as pessoas não saem à noite, e pouca coisa é encontrada nas prateleiras dos mercados.

Felicita Blanco, 70 anos, jornalista veterana, é uma avó de cabelos grisalhos baixinha com seu notebook e uma caneta. Ela passou quase quatro décadas cobrindo crimes em Caracas para o jornal El Carabobeño. A cobertura de roubos de carros blindados e bancos era basicamente seu trabalho. Hoje não tanto. “Como a moeda não vale nada, não tem mais sentido roubar bancos”, disse ela.

Mario Roja, 59 anos, é chofer de táxi em Caracas há 30 anos. Ele exibe seu carro com orgulho – um Dodge cupê, ano 72, verde e azul, estacionado num bairro de classe operária nas colinas de Caracas. De meses em meses era roubado. “Faz um ano ou dois que fui assaltado. No ano passado não ganhei nada. Muito pouco”.

Naturalmente não significa que a Venezuela é um país seguro. O número de assassinatos ainda é um dos mais altos do mundo. (Nos Estados Unidos é de cinco para cada grupo de 100.000 habitantes. Na Venezuela é de 81,4 para cada 100.000 pessoas).

Mas no mundo “Mad Max” de roubos, sequestros e roubos de carros em Caracas, até os criminosos passam por dificuldades.

Yender Batista, 27 anos, lavador de janelas cujos antebraços estão repletos de tatuagens, ficou preso por um ano por assalto. Ele diz que não rouba mais. E não é o único; bem menos ladrões atuam no bairro onde mora, El Valle. Alguns emigraram, outros foram mortos pela polícia. Muitos não têm condições de comprar uma arma. Como outros produtos importados, as armas estão cada vez mais caras – cerca de US$ 1.200 disse ele. O equivalente a 20 anos de trabalho ganhando o salário mínimo.

“Agora os criminosos têm de matar um policial para conseguir  uma arma”, afirmou. Sob o governo de Hugo Chávez, que iniciou a “revolução bolivariana”,  a taxa de pobreza caiu para a metade entre 2002 e 2008. No entanto, a  Venezuela se tornou um dos países mais perigosos do planeta.

São muitas as teorias que procuram explicar esse fenômeno. Mas o que está claro é que a polícia se tornou cada vez mais incapaz de resolver os crimes. Os marginais se sentiram encorajados. Em 2009 um estudo do governo concluiu que dois terços das vítimas de sequestro eram de classe média e média baixa.

Hoje os operários de fábricas ou professores não podem pagar resgates. E com a hiperinflação fica muito complicado o pagamento em bolívares. Um resgate de US$ 5.000 se converteria em 90 quilos de cédulas venezuelanas. Mesmo para os marginais é difícil transportar esse volume de dinheiro.

Há outra razão para os roubos ficarem mais difíceis. Os venezuelanos estão mais cautelosos. Poucas pessoas andam com joias nas ruas. A vida social em Caracas, uma cidade tropical com uma vida noturna vibrante, mudou drasticamente.

Amram Nahon, 84 anos, membro de uma pequena comunidade judaica, se reunia às sextas-feiras com toda a família para o jantar do Shabat, que com frequência ia até meia-noite. Mas hoje é muito perigoso sair depois que escurece. “Agora nos reunimos aos sábados, para o almoço”, disse ele.

Se muitas modalidades de crime e violência declinaram, outras estão crescendo. Por exemplo, há um número cada vez maior de assassinatos de jovens pobres pela polícia, incidentes em que o assassinado é listado como  “morto por resistir às autoridades”. Esses casos envolvem a temida força de polícia especial conhecida pelas iniciais FAES.

Segundo o governo a força tem por alvo os criminosos. Grupos de direitos humanos dizem que ela é usada como um esquadrão da morte, matando não apenas criminosos suspeitos, mas manifestantes contra o governo.

Em seu Instagram a FAES declarou em janeiro que as alegações de abusos eram “fake News” eram distribuídas por críticos de direita.  Mas talvez o tipo mais chocante de crime que vem crescendo envolve pessoas famintas. Algumas entram em casas e roubam o que encontram na geladeira. Outras atacam pessoas que saem de supermercados e roubam suas compras.

Maduro nega que o país está com escassez de comida. Mas em um supermercado particular num bairro abastado de Caracas as pessoas começaram a entrar, abrir pacotes de biscoitos ou doces e devorá-los, disse um empregado. “São pessoas famintas, não são ladrões”, afirmou./ Tradução de Terezinha Martino

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